Iniciação na África
Na região iorubá, a iniciação de um elégùn (aquele que pode ser “montado”
, possuído, pelo orixá) não apresenta problemas. Geralmente ele foi indicado
para desempenhar esse papel por ocasião do seu nascimento, pela adivinhação,
quando seus pais consultaram um babalaô para conhecer o destino do recém
nascido. O futuro elégùn, muito cedo, geralmente aos sete anos de idade, é
confiado a um sacerdote do orixá. Em se tratar de Xangô, irá para a casa de um
Mógbá _àngó, de um elégùn Sàngó ou, ainda, de uma Ìyá _àngó para viver na atmosfera do
culto do deus.
Em certas regiões nagô , como Saketê ou Ifanhim, ou mesmo em
terras estranhas aos iorubás, como Uidá entre os hweda, há _gbé _àngó poderosos, sociedades que
reúnem todos os adeptos do deus, onde os futuros elégùn fazem sua iniciação em
grupos mais ou menos numerosos.
Tivemos oportunidade de acompanhar as diversas fases dessas
cerimônias para grupos de dezoito elégùn em Ifanhim, onde o _gbé não conhece fronteiras
(anglo-francesa outrora, nigeriano beninesa atualmente); seis em Uidá e dois em
Saketê; assim como na Bahia, onde é idêntico o ritual seguido.
De um lado e outro do oceano Atlântico, as cerimônias de
consagração dos novos elégùn Sàngó duram dezessete dias. Na África, elas começam e
terminam num dia dedicado a este orixá, da semana iorubá de quatro dias. Elas
têm início, por razões que ignoramos, no momento o mais próximo possível do
primeiro quarto da lua, para terminarem na época do último quarto.
Algumas vezes, pode haver variações nos detalhes do ritual, mas a
seqüência geral das diversas partes de uma iniciação é a mesma.
Em Saketê, por exemplo, era preciso substituir um elégùn _àngó já falecido e, antes de
iniciar a cerimônia, foi necessário consulta a alma do morto para obter seu
consentimento e sua concordância com a escolha de um novo eleito.
Essa consulta foi feita por um pequeno grupo, de aproximadamente
vinte pessoas da família, à meia noite mais ou menos, ao ondô de uma estrada
deserta, um pouco fora da cidade. As mulheres pararam em uma ponte sobre um
pequeno rio. Os homens continuaram seu caminho até cerca de cem metros mais a
diante. Um deles, um tal _ládélé, derramou no chão água e azeite de dendê,
colocou por cima nozes de cola e galos vivos, amarrados pelos pés. _ládélé gritou um nome, alongando
cada sílaba ao
máximo, e suplicou:
“Wá gbà aw_n _rù r_,
Ki fi _m_ wa silè fún wa
Ki òsà á gbé wa“
(“Vem buscar tuas oferendas
Deixa-nos teu filho na terra
Para que o orixá nos proteja” ).
De longe, ouviram-se gritos prolongados: “O o o o o o o o o” . Era Baba Egúngún que respondia.
Todos os presentes, ajoelhados, pediram-lhe para vir ao encontro
deles. Perceberam uma sombra aproximado-se na escuridão. _ládélé avançou em sua direção e
deu-lhe as nozes de cola e os galos. O espírito gritou três vezes: Mo gbà a ( “
Eu aceito” ), e acrescentou: E j_
mba ndélé [“ Venham comigo para
casa (no além)” ]. Os presentes recusaram: E béò! A pò lébìn, _m_de o wà láàrin wa (“ Não! Há muita
gente depois de nós, há crianças entre nós” ). Baba Egúngún insistiu. _ládélé pegou então uma panela de
barro e jogou-a violentamente no chão, onde ela se desfez em pedaços. Todos
fugiram paraa cidade, perseguidos por um curto espaço de tempo e sem muita
firmeza por Baba Egúngún.
No dia seguinte, começavam a iniciação dois novos elégùn. Um deles
ia substituir o sacerdote morto, cuja alma acabava de ser consultada. O Xangô
da família encontraria, assim, outro de seus descendentes em quem se encarnar
durante as cerimônias organizadas em seu louvor.
Entrada na igbó ikú
Os futuros elégùn vão para o local de sua iniciação alguns dias
antes do início das cerimônias. Sua consagração ao orixá pode se realizar em um
templo já existente, na cidade ou em uma roça das redondezas, ou então em um
novo local que deverá ser sacralizado. Em todos esses casos, deverá ser reservado
um lugar privado, onde deverá viver os noviços, próximo ao local onde se
realizarão as cerimônias públicas. Esse lugar, às vezes chamado “ convento“ por
alguns autores, tem o nome de igbó ikú, “ a floresta da morte” . Pode ser um
simples quarto de uma casa ou um grande recinto
cercado, permanente ou transitório, atrás do pátio da roça, onde
os iniciados vão viver durante os dezessete dias de sua reclusão, protegidos
das intempéries por um simples tapume de palha trançada.
A permanência na igbó ikú simboliza a passagem para o além, entre
a antiga existência profana e a nova, consagrada ao deus. Desde sua entrada
nesse lugar, os noviços são obrigados a fazer abluções e tomar beberagens
vegetais, feitas com a infusão de certas folhas, cascas e raízes dedicadas ao
orixá, iguais às que serviram à preparação do odù do orixá, descrito pó Epega,
reforçando assim a ligação entre este e seu futuro elégùn.
Essas beberagens e abluções, que contêm o àsé, a força do deus,
parecem exercer uma ação sobre o cérebro dos iniciados e contribuir para
deixa-los num estado de entorpecimento e de sugestionabilidade que fará deles
criaturas dóceis e aptas à consagração.
Àìsùn
Na noite que precede o começo das cerimônias de realização
realiza-se o àìsùn (“ não dormir” ), a vigília noturna, durante a qual os
participantes da festa chegam em pequenos grupos, cumprimentam-se uns aos
outros, falam das últimas novidades, sentam-se aqui e ali, descansam e bebem
alegremente vinho de palma, meu, ou de álcool abatido por destilação, _tí. No decorrer das iniciações
observadas para Xangô, encontravam-se presentes os Mógbá Sàngó, aqueles responsáveis pelo
bom andamento do culto e guardiões do axé. Caracterizam-se por não entrarem em
transe como os elégùn. A Ìyá _àngó do lugar ou Ìyá _gb_, a “mãe da comunidade”,encontra-se
também presente. É ela quem transmite o axé aos novos elégùn.
Uma das iniciações observadas foi realizada num local ainda não
consagrado. Foi preciso prepara-lo, pois, no dia seguinte, seria realizado o
batismo de sangue dos noviços. Cavaram um buraco no chão e vários elementos
foram ali despejados: a infusão das plantas, de que já falamos, o sangue e as
cabeças de um galo e de um pombo sacrificados sobre o buraco; foram acrescentados
elementos calmantes: limo da costa, òrí; azeite-de-dendê, epo pupa; o líquido
que escorre da casca esmagada de um caracol, ìgbín; e, ainda, quatro espécies
de pós-pretos obtidos pela calcinação de vários elementos; e, por fim, nozes de
cola de duas espécies chamadas obíe orógbó. O
buraco foi tapado, devidamente marcado com alguns búzios e coberto
com um esteira.
Neste lugar exatamente, será colocado, no dia seguinte, um pilão,
odó, emborcado, que servirá de assento aos noviços para seu batismo de sangue.
Orì_í_e
O primeiro dia é chamado orò_í_e (“ cumprir a tradição” ), termo correspondente ao
sundide de origem fon, significado “ primeira saída dos iniciados” , empregado
nos trabalhos precedentes.
Nesse dia, realizam-se duas cerimônias: anl_dò e afèjèwè.
Anl_dò
Cedo, pela manhã, realiza-se o que se chama anl_dò(“ vamos ao riacho” ), quando
os noviços, homens e mulheres, saem da igbó ikú. Eles caminham, um atrás do
outro, no estado de entorpecimento do qual falamos anteriormente. Um grande
pano branco, àlà, é mantido sobre suas cabeças; estão todos vestidos de panos
esfarrapados e entram no recinto consagrado a Xangô, onde cada um deles recebe uma
jarra contendo infusão de folhas dedicadas ao orixá. Quando saem dali Ìyá Sàngó e algumas iniciadas já antigas colocam sobre a
cabeça dos futuros elégùn uma rodilha de fibras, usadas na áfrica
como esponjas vegetais. Em cada uma dessas rodilhas foram presos
uma fileira de búzios e um pintainho de alguns dias, amarrado pelos pés. As
jarras são colocadas por cima Ìyá Sàngó e suas ajudantes. Elas têm o cuidado de
coloca-las três vezes seguidas, antes de deixa-las ali. A fila de noviços
forma-se de novo e dirige-se, acompanhada pelas mulheres encarregadas da iniciação
e por um conjunto formado de atabaques bàtá ou de cabeças agbè. Esse pequeno
grupo dirige-se a um riacho, ou uma lagoa, situado no meio de uma floresta
sagrada da vizinhança. Os noviços vão com o corpo inclinado para frente e a
cabeça levantada para manter o equilíbrio da jarra. Caminham dançando, seguindo
o ritmo dos atabaques, e de vez em quando esboçam alguns passos mais firmes, com
os joelhos dobrados. Muitas vezes, um elégùn de Exu precede o cortejo para que
nada de desagradável aconteça.
As iniciadoras e os noviços são os únicos a penetrarem na
floresta. Os músicos e as pessoas da escola param e esperam na proximidade. À
beira do rio, ou da lagoa, fora construída uma pequena cabana de folhas de
palmeira. No centro, fora cavado um buraco e coberto com alguns galhos,
formando uma grade. A terra retirada da escavação fora deixada ao lado, em
forma de montículo.
Cada noviço deve ficar de pé um após outro, em cima da grade
improvisada sobre o buraco, e a jarra é colocada em cima do montículo. O
iniciado é então despido e seus trapos são jogados no fundo do buraco. Seu
corpo é lavado com a água contida na jarra e esfregado com a rotilha os búzios
e o pintainho, que, não resistindo a esse tratamento, não demora a morrer. Tudo
isso é depois jogado no buraco. A operação consiste, ao mesmo tempo, num
sacrifício de substituição e de purificação das faltas que tivessem podido
manchar o passado dos noviços. Assim, uma vez purificado, seu corpo é
enxaguado com a água do riacho e vestido com um pano branco.
Colocam-lhe na cabeça uma nova rodilha e a jarra contendo gora água do riacho.
Quando o último dos noviços terminar essa obrigação, tornam a fechar, socando a
terra com os pés. O abandono das roupas velhas, substituídas pelos novos panos
brancos, é um símbolo da rejeição do passado e da passagem para uma vida nova
dedicada ao orixá.
Afèjèwè
Durante o tempo em que os noviços foram realizar essa cerimônia de
purificação, Mógbá Sàngó e seus auxiliares foram ao local consagrado na
véspera, prepara-lo para a realização do batismo de sangue dos neófitos,
afèjèwè (“ lavamos com sangue” ).
Algumas folhas são colocadas embaixo as esteira, posta no chão na
noite anterior, e um pilão é emborcado em cima. Um muro de panos é mantido
pelos auxiliares ao redor do local consagrado, para proteger dos olhares
indiscretos à parte da cerimônia a ser realizada.
Os noviços são levados, um após outro, para esse recinto. Estão no
estado de entorpecimento mental a que já nos referimos. Cada um deles é amparado
e guiado pelas iniciadoras até o pilão emborcado, onde é sentado e levantado
duas vezes para só permanecer na terceira. A seus pés são colocados, sobre uma
bandeira de madeira, um edùn àrá (machadinha de pedra ou pedra de raio),
suporte do axé de Xangô, um facão e um Séré (xeré), chocalho feito com uma cabaça alongada.
Os cabelos do iniciado são raspados e recolhidos em uma pano
branco colocado em seu colo. São feitas incisões no alto do seu crânio, onde
será colocado, depois, um òsù oxu), do qual falaremos mais adiante.
Para cada noviço são sacrificados primeiro os animais: galos,
pombos, tartarugas, galinhas-d´angola e caracóis. O sangue é derramado ao mesmo
tempo sobre a cabeça do iniciado e sobre a machadinha de pedra, estabelecendo a
ligação entre o futuro elégùn e Xangô.
Os corpos dos animais decapitados são apresentados ao noviço, que
chupa um pouco do sangue; pode acontecer que ele aperte em seus dentes o
pescoço do galo com tal força, que arranque um pedaço e mastigue, lentamente,
por alguns momentos. Marca-se a cabeça do noviço, bem como o peito, as costas,
os ombros, as mãos e os pés com o sangue dos animais sacrificados.
O ponto culminante da cerimônia de batismo de sangue é aquele em
que um carneiro é sacrificado.
Antes de imolar o animal, é costume dar-se-lhe para comer algumas
folhas verdes de cajazeira. Mas, antes, as folhas são mostradas três vezes ao
carneiro e tocadas levemente na cabeça do noviço. Da terceira vez, elas lhe são
mostradas mais demoradamente e, em geral, o animal começa a devora-las.
Se o carneiro não as comer ele é poupado e deverá ser substituído
por outro. Logo que ele começa mastigar as folhas, a pedra de raio é
introduzida à força em sua goela e seu focinho é amarrado fortemente. O
carneiro é, então, degolado e o seu sangue é aparado em uma cabeça e derramada
um parte no ojúbó e outra na cabeça do noviço, escorrendo por todo o
corpo. Em seguida, com as penas das aves sacrificadas, cobre-se a cabeça, o
rosto e os diversos pontos de seu corpo, que foram marcados com sangue.
O espetáculo é impressionante e lembra um pouco o que se sabe a
respeito dos “Mistérios de Cibele, onde o iniciado, deitado em uma cova,
recebia sobre seu corpo o sangue de um touro ou um carneiro” .
A cabeça do animal é separada do corpo, acima do noviço prostrado
sobre o pilão. Acontece então que Xangô manifesta sua aceitação aos sacrifícios
e à consagração do novo elégùn, apossando-se dele, “montando” (gùn) nele. O
elégùn pega a cabeça do carneiro com as duas mãos, aproxima-a de seu rosto e
aperta, entre os dentes, uma das artérias carótidas, para entregar-se, em
seguida, a uma dança alucinante ao som das palmas e dos cantos dos presentes. A
cabeça do carneiro, estreitamente ligada à do elégùn, balança ao ritmo da dança
e parece, às vezes, mais viva que o rosto estupefato do noviço. Uma espécie de
comunhão parece estabelecer-se entre eles, símbolo vivo do sacrifício de substituição
que acaba de ser consumado.
Alguns momentos depois, o noviço senta-se de novo no pilão,
descerra os dentes e solta a cabeça do animal sacrificado. Move-se ainda por
uns instantes, fazendo girar o seu tronco e inclinando-o para frente e para
trás. O êxtase atinge seu paroxismo e é logo seguido de um desfalecimento. O
iniciado cai no chão, debatendo-se, e é logo levado para a igbó ikú.
A reação do noviço no batismo de sangue pode-se ser mais calma e
sua volta a igbó ikú feita com mais serenidade. Ele, ou ela, torna-se um _m_ titun, uma “ criancinha” . Ele,
ou ela é guiado por suas iniciadoras que, com solicitude, amparam seus passos
ainda hesitantes. O iniciado continuará nesse estão, _m_ titun, durante os dezessete dias
de seu internamento na igbó ikú.
O grupo dos _m_ titun encontra-se reunido dentro desse recinto.
Deverão realizar, regularmente, suas abluções e tomar infusões vegetais.
Passarão seus dias deitados em esteiras, cobertos de panos brancos. Um òsù (oxu) é preso em sua cabeça,
exatamente no lugar onde foram feitas as incisões do dia do batismo de sangue.
Este òsù é uma pequena bola, do tamanho de um ovo de pombo,
feita de um aglomerado de folhas reservadas de Xangô, embebidas no sangue dos
animais sacrificados, às quais acrescentam-se elementos de uso constantes nas
oferendas: ratos (eku) e peixes (_já), que simbolizam noções complementares como terra –
água, masculinidade -feminilidade, esquerda –direita; pena de galo das Campinas
(àlúko); de cuco (àgbe); de papagaio (odíde); de garça (lékeléke), cujo
simbolismo é mais difícil de interpretar.
Tudo isso é pilado e comprimido para formar o ò_ù, cujo objetivo e sacralizar a
cabeça do iniciado. Este será chamado, a partir daí, adó_ù, que significa “ aquele que
usou um ó_ù” , prova incontestável de sua iniciação.
Ijéta ou Ijéfun
O terceiro dia da iniciação, ijéta, é o dia de _fun, quando o corpo do iniciado é
marcado com traços de giz branco.
Nesse dia, realiza-se a primeira aparição em público dos _m_ titun. Eles vão todos até o
riacho, na floresta sagrada, levada por seus iniciadores. Sua atitude, de
completa submissão, revela que eles passaram a um estado de crianças de tenra
idade. Andam guiados, quase que colados atrás dos iniciadores, enrolados no
mesmo pano branco, como criancinhas nas costas da mãe. Voltam para a igbó ikú,
logo saindo novamente com a cabeça e o corpo enfeitados com riscos e pontos
brancos traçados com giz (efun), sinal de respeito por Obatalá, criador dos seres
humanos. Os _m_ titun dão três voltas pela praça, com passos incertos,
e são levados de novo ao local de seu isolamento.
Ijéje
O sétimo dia, ijéje, é o dia do waj_, no qual a cabeça dos _m_ titun é pintada de azul-anil
(aro), com acréscimo de desenhos feitos com osùn (ossum), um pó vermelho
extraído da casca de uma árvore. O terceiro e o sétimo dia caem no dia semana
iorubá dedicado a ifá.
Ijétadogún
No décimo sétimo dia, ijétadogún, quinto dia dedicado a Xangô
desde o começo iniciação, chega finalmente o momento em que o _m_ titun torna-se um elégùn e
passará a usar um novo nome.
Esse dia é marcado por duas cerimônias: a da escolha do novo nome
e a da reaprendizagem das atividades da vida diária.
Procura do odù
De manhã cedinho, cada um dos _m_ titun é levado separadamente ao local consagrado a
esse deus.
O iniciado é sentado sobre um pano branco, de costas para o ojú _àngó, e entre suas pernas
estiradas coloca-se um _dùn àrá, o mesmo que serviu para a sua consagração ao
deus no dia de orò_í_e. Ìyá Sàngó pergunta-lhe: “ Procuras o poder do orixá
ou dinheiro?” O candidato responde: “ É o poder do rixa que eu quero” . Em suas
mãos juntas, ele recebe da Ìyá _àngó dezesseis búzios, com os quais fará a
adivinhação.
O _m_ titun esfrega os búzios nas mãos, com elas aponta para
os quatro pontos cardeais, para o alto e para o chão, toca-se vezes na testa e
joga-se sobre o pano, entre suas pernas. Ìyá Sàngó examina a posição dos
búzios, contando os abertos e os fechados, e em voz alta anuncia o resultado,
provocando comentários dos espectadores.
Os búzios são lançados duas vezes para determinar o odù, ou o
signo, que de agora em diante governará a vida do iniciado. Um deles obteve
duas vezes o número 6, Òbàrà, que designa Xangô, e foi felicitado por todos os presentes, pois,
como veremos mais adiante, esse resultado deu-lhe um nome prestigioso.
Reaprendizagem das atividades da vida cotidiana
Graças à determinação do seu odù, os iniciados encontram uma
identidade, uma personalidade, mas falta-lhes ainda reaprender os gestos e as
atividades da vida cotidiana. Eles são considerados como tendo esquecido tudo
de sua vida anterior, a que precedeu os dezessete dias passados na igbó ikú, a “
floresta da morte” .
Os dezoito iniciados são divididos em dois grupos: rapazes e
moças. Os primeiros, cercados por seus instrutores, imitam a partida para o
campo, com uma enxada no ombro e um cesta na cabeça. Fazem gestos de cultivar a
terra, de semear o milho ou subir no tronco de uma árvore para cortar cachos de
dendê. Aos primeiros golpes de facão dados caroços de dendê e grita com uma
falsa admiração: “Ah! Que belo cacho acaba de tirar!” As moças fingem ir buscar
água no riacho com uma cuia ou um pote
na cabeça ou ir apanhar lenha no mato. Os dois grupos voltam ao
terreiro ao mesmo tempo e simulam ir ao mercado, vender e comprar; depois, à
volta á casa para acender o fogo, cozinhar, etc.
Todos os gestos da vida reencontrada são executados em uma
atmosfera de humor e de alegre descontração depois do longo período de
recolhimento, de resignação e de langor passado na igbó ikú.
Aproxima-se o fim da iniciação. Colocam-se esteiras no chão, diante
do local consagrado a Xangô. Os novos adó_ù estão sentados entre as pernas estiradas de seus
iniciadores, postados atrás deles.
A Ìyá Sàngó pronuncia um longo discurso, meio sério
engraçado, e faz uma série de recomendações.
Associando o gesto à palavra, esbarra o pé em um iniciado sentado
à sua frente, puxa-lhe a orelha, toca-lhe a testa declarando: “ Se alguém te
der um pontapé, te puxar as orelhas ou te der pancadas na testa, por descuido
ou acidente, não precisas dizer nada, mas se exagerar e o fizer de propósito, é
preciso que te vingues” .
Em seguida, ela diz: “ Se alguém à noite passasse com uma lâmpada
acesa atrás de ti...” .
Essa possibilidade sugerida pela Ìyá _àngó teria como conseqüência
deixar que o iniciado visse sua sombra (òjìjì), que abriga seu èmi que é, ao
mesmo tempo, seu sopro, sua alma, seu espírito e seu princípio vital; isso
constituiria um ato repreensível, feito com intenções hostis. Uma das
iniciadoras gritou horrorizada quando ouviu evocar um tal sacrilégio e rolou
pelo chão, arrastando consigo, por contágio, todos os outros adósù e seus iniciadores.
Depois dessa cena de confusão, eles foram levantados e sentados
novamente. Todos eles, inclusive os iniciadores, tinham o ar entorpecido que
acompanha os transes de possessão.
Passada essa grande comoção, realizaram-se casamentos simulados.
Meninos e meninas foram escolhidos, entre os assistentes, para desempenhar o
papel de marido ou de mulher aos adósù. As pernas de cada casal foram cruzadas em sinal de
união e novas recomendações foram feitas: “ Uma mulher pertencente ao culto de
xangô pode ter relações com um homem que não segue o mesmo culto, mas não com
um homem que faça parte do _gbé _àngó” , e a iniciadora enumerou assim uma série de
obrigações e de proibições que decorriam de sua admissão ao culto do deus. Em
seguida, ela
ensina aos “ recém-casados” a cuidarem um do outro oferecendo-se
mutuamente de comer.
A Ìyá Sàngó comunicou depois a cada um
dos novos elégùn o nome que usaria a partir daquele momento. O que achara por
duas vezes o sinal de Òbàrà recebeu o nome de _bàdiméjì, ou seja, “ o rei torna-se
dois, ele é duplo, ele é rei de dia e ele é rei de noite” . Este nome glorioso
foi recebido com o aplauso dos presentes.
A partir daquele momento, pronunciar o antigo nome dos iniciados
tornar-se-ia um ato sacrílego, que consistiria em chamar um vivo pelo nome de
um morto e, assim, implicitamente, desejar-lhe a morte.
Para terminar a descrição das cerimônias de iniciação na África,
chamamos a atenção para as cerimônias de ressurreição dos futuros, sacerdotes
do vodun fon Sapata-Ainon, correspondente à Sànpònná-Obalúayé dos iorubás.
Embora observada em Abomey, em pleno território fon no ex-Daomé,
essa cerimônia permanece ligada ao grupo de pessoas que falam o iorubá, pois os
futuros sapatasi usam. Durante todo o período de iniciação, o nome de ànàgónu (“
os nagôs” ), e a língua por eles falada durante todo o período de sua reclusão
é o iorubá arcaico, ainda falado pelos aná, também chamados ifè, estabelecidos
na região de Atakpamê, no Togo. Essa cerimônia, da qual já publicamos as
fotografias em outras obras, marca a ruptura do noviço com seu passado, através
de morte simbólica, e seu nascimento para uma nova vida consagrada a Sapata.
Uma ou duas semanas durante uma sessão de danças e cantos diante
do templo de Sapata, os futuros sapatasi caíram no chão, com o corpo retesado,
como em estado de catalepsia, morto, como se diz, pelo vodun Sapata. Os corpos
foram logo cobertos com panos e levados para o interior do templo. As cerimônias
de ressurreição realizavam-se no próprio local onde os noviços caíram. Um
público numeroso estava reunido e os tocadores de atabaque estavam instalados
no centro do terreiro sob uma árvore frondosa.
Aproximadamente às quatro horas da tarde, o sapatanon, “ o grande
sacerdote de Sapata” , e três dignitários do templo vieram desenhar no chão um
grande retângulo, derramando, sucessivamente cada um deles, rastros: amarelo,
de farinha de milho misturada com azeite-de-dendê (v_v_); branco, de farinha de milho;
preto, de pó de carvão vegetal; e, por fim, milho e feijão misturados. Uma esteira
de manchas negras, vermelhas e brancas foi trazida e estendida acima dos
sacerdotes que realizavam um sacrifício de substituição, oferecendo galos a
terra para que ela concordasse em devolver a vida àqueles pelos quais se
realizava a cerimônia.
Depois de ter sido levantada e colocada sete vezes no chão, a
esteira foi estendida no centro do espaço delimitado pelos traços coloridos. As
jarras contendo infusão de folhas foram trazidas. Os “ cadáveres” também foram
trazidos para fora do templo, um a um, enrolados em um pano, de cor verde e
costurado como uma mortalha. O corpo foi deitado sobre a esteira,
abundantemente borrifado com o líquido das jarras, e a mortalha foi enfim
descosturada. Uma grande folha foi colocada sobre o rosto do noviço; o corpo
apareceu, deitado do lado esquerdo, com a pele esverdeada pela tintura do pano
desbotado. Alguns vermes mexiam-se sobre o corpo, mas alguns descrentes
afirmavam que eram provenientes de galos mortos que teriam feito companhia ao “
cadáver” em sua mortalha.
Mulheres ajoelhadas massageavam e lavavam o corpo com o líquido
contido nas jarras. Sapatonon afastou-se alguns passos e chamou sete vezes o “morto”
pelo seu novo nome. Quando se ouviu o último apelo, o corpo começou a tremer e
a agitar-se, ressuscitando diante da assistência que aplaudia e manifestava sua
alegria pela vinda ao mundo de um novo ànàgónu.
Este texto publicado no livro "Verger/Bastide, dimensões de uma amizade", editora Bertrand Brasil, 2002, é realmente muito bom. Parabéns pela escolha do texto.
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