O Candomblé e Família Bamgbose
A ORIGEM DO CANDOMBLÉ NO BRASIL
A guerra contra os daomeanos fora, literalmente,
longe demais. Escravizadas na terra-mãe, princesas e sacerdotisas
africanas, do país iorubá, acabaram indo parar na santa baía,
acorrentadas como animais. Foi assim que Iyá Akalá, Iyá Adetá e Iyá
Nassô, nomes preservados pela tradição oral, teriam migrado para o
Brasil. Mais tarde, fundariam, na Bahia, a Casa Branca, o mais antigo
templo de culto africano do país. Começava assim, no século XVIII, em
Salvador, primeira capital da colônia portuguesa, no bairro da
Barroquinha, a religião dos orixás. Hoje, o terreiro comandado por
Altamira Cecília dos Santos, a mãe Tatá ,é símbolo de resistência, fora
da África, dos reinos de Ketu e Oyó.Matriarcado ancestralPrincesas e
sacerdotisas africanas plantaram na Bahia o axé do terreiro mais antigo
do Brasil. A Casa Branca representa o ponto de partida da fascinante
história sobre a origem do candomblé no Brasil. Os traficantes e
senhores talvez não soubessem, mas naqueles navios negreiros,
acorrentadas como animais, viriam verdadeiras princesas e as mais
importantes sacerdotisas africanas do país iorubá, escravizadas durante a
guerra contra os daomeanos.
Mas já durante a longa travessia do
Atlântico, e também ao desembarcar nas águas santas da baía, as nobres
matriarcas foram reconhecidas e veneradas pelos seus conterrâneos. Com
sua sabedoria ancestral, elas iriam reconstituir na Bahia os locais
sagrados destruídos na terra-mãe.E, em pleno centro da capital baiana,
fundariam a mais antiga casa de culto africano do Brasil. A tradição
oral preservada pelos iorubás aponta o nome de algumas mulheres como
sendo as criadoras da Casa Branca, hoje situada no Engenho Velho da
Federação.iyá Akalá, iyá Adetá e iyá Nassô são os mais citados.Mas
alguns detalhes se perderam com o passar dos séculos e nem mesmo os
atuais representantes da casa sabem ao certo quem de fato foi o
principal personagem dessa história. No entanto, alguns depoimentos de
velhas senhoras do candomblé, registrados por pesquisadores que se
dedicaram ao estudo das religiões africanas na Bahia, deixaram pistas
que podem contribuir para a revelação do mistério que envolve a fundação
do terreiro.O etnólogo Edison Carneiro, que conviveu com antigas mães
de santo da velha tradição iorubá, revela o nome das três mulheres, sem,
no entanto, identificar qual delas de fato foi a fundadora do terreiro e
se atuaram ao mesmo tempo ou se sucederam no poder.Já Vivaldo da Costa
Lima, inspirado pelo depoimento da célebre mãe Senhora, do Ilê Axé Opô
Afonjá (fundado em 1910), sugeriu que iyá Akalá era mais um título, um
"oiê", de iyá Nassô.Pierre Verger, com base no depoimento de mãe
Menininha do Gantois (fundado em 1890), não cita o nome de Iyá Adetá e
se refere a iyá Akalá como sendo a primeira mãe-de-santo da Bahia, que
seria substituída por iyá Nassô.Para complicar ainda mais, Verger cita
um novo nome, Iyalussô Danadana, que teria vindo de Ketu para introduzir
o culto a Oxóssi na Bahia. Por fim, há a versão de Roger Bastide, outro
etnólogo estudioso das religiões africanas.
Segundo ele, a mãe de Iyá Nassô havia sido
escrava no Brasil e depois de alforriada voltou para a África, onde a
concebeu. Anos mais tarde, Iyá Nassô teria vindo da Nigéria acompanhada
de Marcelina Obatossí, sua sucessora na Casa Branca, com a missão de
fundar um candomblé em Salvador.Após 21 anos de pesquisas, o antropólogo
Renato da Silveira, autor de artigos sobre a fundação dos terreiros
mais antigos da Bahia (e com um livro no prelo sobre a Casa Branca),
lança um pouco de luz nessa história até então bastante obscura. Tudo
teria começado ainda no país iorubá, no reino de Ketu, durante o governo
do Alaketu, Akibiohu, entre 1780 e 1795. De lá vieram alguns
integrantes da família real Arô, aprisionados pelos daomeanos na cidade
de Iwoye (Iuó-iê), junto com um grupo de cerca de 200 escravos. Entre
eles, estavam importantes sacerdotes e também duas princesas, gêmeas,
com cerca de 9 anos de idade. Eram netas do Alaketu. Uma delas, Otampê
Ojarô - que recebeu o nome cristão de Maria do Rosário Francisca Régis
-, foi a fundadora do Terreiro do Alaketu, no Matatu de Brotas, e
certamente participou dos rituais de fundação da Casa Branca.Reza a
lenda que, ao atingir a maioridade, a princesa foi alforriada pelo
próprio Oxumarê, na figura de seu proprietário. Mas, segundo Renato da
Silveira, ela era ainda muito jovem quando o terreiro da Barroquinha foi
fundado e uma outra sacerdotisa deve ter iniciado os fundamentos de
Oxóssi, iniciando a soberania de Ketu na Bahia.Conforme Silveira, iyá
Adetá teria sido a sacerdotisa da linhagem Arô a fundar a primeira
versão do candomblé baiano, em um culto quase que doméstico a Odé (o
caçador, um dos nomes de Oxóssi) e Exu (o orixá mensageiro).Isso teria
acontecido não nos fundos da Igreja da Barroquinha, onde mais tarde
seria criada a Casa Branca, mas na Rua da Lama (atual Visconde de
Itaparica), uma das travessas do bairro próximo à região central de
Salvador.SucessãoIyá Akalá pode ter vindo junto com o clã dos Arôs para a
Bahia, ou chegado logo depois.
Ela deve ter sido a fundadora do culto a Airá
Intile, uma das qualidades de Xangô. Iyá Nassô, por sua vez, era uma
das figuras mais nobres do império de Oyó, responsável pelo culto ao
orixá do rei, mas é provável que ela tenha chegado em terras baianas
somente mais tarde, por volta de 1830, com a missão de comandar a união
das diversas divindades africanas em um único templo religioso. Muitos
adeptos da casa começam a contar, a partir daí, a história da fundação
do candomblé, desde que todos os orixás passaram a ocupar o mesmo espaço
sagrado. Em homenagem a esta matriarca ancestral, o título africano da
Casa Branca ainda hoje é Ilê Iyá Nassô Oká, a casa de iyá Nassô.Reza a
tradição iorubá que iyá Nassô retornaria mais tarde à Nigéria, para
reconstituir alguns elementos do culto e provavelmente para adquirir
tipos vegetais, minerais e animais necessários nas cerimônias
religiosas. Com ela levou sua sobrinha Marcelina Obatossí, e retornou
com outras figuras eminentes, que ajudariam a compor na Bahia o cenário
dos antigos rituais africanos.Marcelina Obatossí sucedeu sua tia. Em
seguida, duas mulheres disputaram o trono do terreiro: Maria Julia
Figueiredo e Maria Júlia da Conceição Nazaré. O oráculo de Ifá elegeu a
primeira e Maria da Conceição partiu com sua família e aliados para as
terras de um antigo casal estrangeiro, de sobrenome Gantois. Também por
questões de preeminência, mãe Aninha deixaria a Casa Branca anos mais
tarde para fundar o Ilê Axé Opô Afonjá, na roça do São Gonçalo do
Retiro.Junto ao Alaketu, eles formam o berço do candomblé de origem
iorubá na Bahia. Depois de Maria Júlia Figueiredo viriam Ursulina
Figueiredo (mãe Sussu), Maximiana Maria da Conceição (tia Massi), Maria
Deolinda, Marieta Vitório Cardoso e Altamira Cecília dos Santos (mãe
Tatá), atual ialorixá da Casa Branca, hoje reconhecida como o candomblé
mais antigo do Brasil, a matriz dos fatos, lendas e mitos que narram a
história de mulheres soberanas, que deixaram seus impérios africanos
como escravas para reinarem absolutas na Bahia de todos os santos, com a
bênção de seus Orixás.
Monumento negro das AméricasCasa Branca é
símbolo vivo da história de resistência de um povo. O monumento a Oxum
foi idealizado por Oscar Niemeyer e tem escultura de CarybéTestemunho da
história de fé e resistência de um povo, onde sobrevive a riquíssima
tradição dos reinos de Oyó e de Ketu, o terreiro da Casa Branca foi o
primeiro monumento negro das Américas a ser considerado patrimônio da
nação. Mas para compreender seus espaços sagrados é preciso levar em
conta os rituais desenvolvidos há mais de 150 anos no local. Cerimônias
religiosas que, apesar da opressão policial, se mantiveram fiéis às
tradições plantadas pelos ancestrais nagôs.No topo do terreno em
declive, ao longe se vê a casa branca, a edificação principal que deu
nome ao templo religioso. O barracão, como é chamado pelos adeptos do
candomblé, domina o cenário que compõe a "roça" e centraliza os cultos
mais importantes; é o cérebro do terreiro. No centro do barracão há uma
grande coluna, chamada ixê, culminada por uma coroa de madeira em
dimensão monumental, dedicada ao orixá Xangô. O limite da coroa é
exteriormente marcado com um oxê - o machado duplo, principal símbolo do
orixá da justiça -, e uma quartinha de barro. De acordo com o
antropólogo Raul Lody, o ixê funciona como uma espécie de cordão
umbilical, um elo permanente com o terreiro e o Orum, que para os
africanos representa o céu, a morada dos orixás.Em sua volta, estão
dispostos os ilês orixás, as diversas casas de santo, construídas em
alvenaria, com seus assentamentos a Exu, Ogum, Oxóssi, Omulu, Xangô,
Iemanjá, Iansã, Obá e outras divindades que regem o destino do terreiro.
Em espaço contíguo está o peji de Oxalá e, ao lado, ficam os aposentos
da ialorixá.
Completando os espaços do prédio estão a
cozinha, uma pequena sala ocupada pelos ogãs, os banheiros e o roncó, as
camarinhas onde ficam confinadas as noviças no período de iniciação,
uma espécie de útero do candomblé que vai gestando suas novas
filhas-de-santo.Vegetação ritualAbraçando e acolhendo as divindades
africanas, se vê o mato, a vegetação ritual e as imensas árvores
sagradas - como jaqueiras e gameleiras brancas - que reservam outros
assentamentos, como o do orixá Irôco. Por fim, se vê as habitações da
comunidade local, de famílias que há mais de um século ocupam o
candomblé, reunindo os mortais aos espíritos ancestrais.Na parte baixa
da colina, o visitante se surpreende com uma construção imitando um
barco, feito de alvenaria, dedicado a Oxum, um dos principais santuários
ao ar livre da Bahia. O povo da Casa Branca gosta de lembrar que a água
da fonte de Oxum, onde impera uma sereia prateada, corre até o oceano,
onde a orixá das lagoas e rios se encontra com Iemanjá, a rainha do mar.
Vale destacar que a Praça de Oxum, como é chamada, foi projetada pelo
arquiteto Oscar Niemeyer, e a sereia, pelo artista plástico Carybé.A
Casa Branca foi tombada em 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan), depois de um esforço conjunto, uma aliança
entre intelectuais e adeptos do candomblé, sob a liderança do
antropólogo Ordep Serra, que hoje é também ogã (uma espécie de protetor
civil) e ex-presidente da Sociedade Beneficente São Jorge do Engenho
Velho, entidade que dá conta de alguns procedimentos administrativos e
projetos sociais. Atualmente, a associação é dirigida por Arielson
Chagas, o ogã Léo, filho de Aeronithes Conceição Chagas, a mãe Nitinha
D''Oxum, uma das ialorixás mais respeitadas do Brasil.Depois da Casa
Branca, o Terreiro do Gantois, o Ilê Axé Opô Afonjá, do São Gonçalo do
Retiro, o Alaketu, do Matatu de Brotas, e o Bate-Folha - este de nação
Angola - também já foram tombados como patrimônio da nação.
O antropólogo Ordep Serra explica que é o
simbolismo dos elementos que formam o conjunto e as características do
culto que devem determinar as diretrizes da preservação do templo matriz
do rito nagô no Brasil. O profundo elo da natureza e sua ocupação
espacial pelo imaginário religioso cria um perfeito equilíbrio entre
paisagem e arquitetura, compartilhando matas, árvores, riachos e demais
marcos naturais que se integram à proposta religiosa e às festas do
candomblé.Águas de OxaláAs festas da Casa Branca se iniciam no fim de
maio ou início de junho, com a celebração a Oxóssi, o onilé, pai do
terreiro. Depois, acontece a festa de Xangô, dono do barracão. Já na
última sexta-feira de agosto, é realizada uma das mais belas cerimônias:
as Águas de Oxalá, rito de purificação que prepara a casa para as
cerimônias de todo o período festivo que se intensifica a partir de
setembro.Nas primeiras horas da manhã, ainda madrugada, as
filhas-de-santo seguem vestidas de branco em procissão até a fonte
dedicada a Oxum. As sacerdotisas carregam vasos, potes e outros
artefatos de barro, enquanto cantam e dançam ao som dos atabaques. Após
encher os vasos de água, as mulheres voltam, em fila, com seus potes nos
ombros. O ritual tem uma pausa e depois continua à noite, com uma longa
festa no terreiro. Os três domingos seguintes às Águas de Oxalá são
dedicados a Oduduá (orixá da criação), Oxalufan (Oxalá velho) e Oxaguian
(Oxalá jovem).Na primeira segunda-feira após esse ciclo, o orixá Ogum é
celebrado, e, na segunda seguinte, Omolu. O ciclo de festividades
termina no final de novembro, com várias cerimônias de iniciação,
tributos a Xangô e a Oxum. No dia de sua celebração, o grande barco é
enfeitado de amarelo e dourado, onde são depositados as iguarias
africanas em oferenda à orixá. Nenhuma dessas festas pode ser
fotografada ou filmada no interior do candomblé, por ordem expressa de
sua governante, a iyalorixá Altamira dos Santos, filha de Oxum que
representa a mais antiga linhagem de mães-de-santo. Uma linhagem de mais
de dois séculos.
Que representa 200 anos de resistência e
tradição. E de orgulho para toda uma civilização.Perseguição e
mudançasAfricanos da Casa Branca foram expulsos do centro da capital e
se mudaram para a roça do Engenho VelhoA Bahia estava passando por
profundas transformações naquele meado de século XIX. Desde então, a
Barroquinha não seria a mesma, passaria por reformas, e não haveria mais
espaço para as comunidades negras ali instaladas, tão próximas da sede
do poder local. Era preciso fazer uma limpeza geral, "modernizar" era a
palavra de ordem entre os governantes. Por volta de 1850, um ano antes
de iniciar as obras na região, as autoridades decidiram acabar com
aquelas reuniões tidas como "bárbaras" e "primitivas". Profanaram os
locais sagrados e expulsaram de vez os africanos e seus orixás do centro
da capital. Seria preciso reconstituir um novo templo longe dali, onde
os atabaques pudessem clamar por suas divindades distante dos ouvidos e
olhares opressores das autoridades vigentes. Nasceria a Casa Branca do
Engenho Velho da Federação.Embora os cultos africanos fossem
terminantemente proibidos na Bahia de outrora - a liberação definitiva
só foi assinada pelo governador Roberto Santos. Em 1976 - a presença do
candomblé na Barroquinha conviveu com a passagem de alguns governos, uns
mais permissivos, como o do famoso Conde dos Arcos; outros mais
intransigentes, a exemplo do temido Conde da Ponte. Em qualquer caso,
todos os rituais eram feitos às escondidas, ou pelo menos disfarçados
pelo sincretismo religioso que ganhava força na Velha Bahia. As duas
principais festas comemorativas da fundação do candomblé fazem
referências aos orixás mais venerados: Oxóssi, o senhor da terra, e
Xangô, o regente da casa. A primeira acontece no dia de Corpus Cristhi, e
a segunda no dia de São Pedro, datas em que não seriam necessários
maiores pretextos para os banquetes africanos e a batida dos
tambores.Quando as festas para os orixás não eram mascaradas pelo
sincretismo, os rituais religiosos eram praticados em segredo absoluto
para escapar da repressão. Reza a tradição iorubá que, para realizar o
culto de Xangô em sigilo, os adeptos da Casa Branca construíram uma
passagem secreta sob uma árvore oca, atingida por um raio.Lá, os altares
sagrados poderiam ser cultuados e as oferendas realizadas de maneira
discreta e preservada.
Segundo contam, o subterrâneo secreto deixou
de existir, assim como outros que haveria por ali, quando o terreno foi
aplainado e as árvores sagradas extraídas, durante a reforma da
área.Ataque policialNo centro da cidade, o terreiro ficava próximo ao
Palácio dos Governadores, ao Mosteiro de São Bento e ainda do Solar do
Berquó, na época residência de um dos desembargadores do Tribunal da
Relação. Temendo um ataque policial, as sacerdotisas arrendaram as
terras do Engenho Velho, longe do governo central.Mas, segundo Pierre
Verger, estudioso do assunto, antes de chegar na Avenida Vasco da Gama,
onde ainda se encontra, o terreiro mudou-se por diversas vezes,
"passando inclusive pelo Calabar, na Baixa de São Lourenço".Depois desse
episódio, todos os templos africanos seriam construídos nos arredores
da antiga Salvador, onde as cerimônias poderiam ser realizadas de
maneira mais discreta.Foi durante o governo do Visconde de São Lourenço,
entre 1848 e 1852, que os negros da Casa Branca seriam de uma vez por
todas expulsos da Barroquinha.Em 1851, a "modernidade" chegou à capital,
com a urbanização da área e pavimentação da Baixa dos Sapateiros,
antiga Rua da Vala, por onde esgotos corriam a céu aberto. Alguns anos
antes, vários levantes de escravos foram deflagrados em Salvador, até
que em 1835 se deu a sangrenta Revolta dos Malês, organizada pelos
negros muçulmanos. Era mais um pretexto para desmobilizar os encontros
entre os africanos na Bahia. Iyá Nassô, tida ainda hoje como a principal
matriarca da história do terreiro, partiu com os seus súditos para
plantar o axé na então distante roça do Engenho Velho, "no Rio Vermelho
de baixo". Dizem que foi o lendário babalaô Bamboxê Obticô, avô do
saudoso Felizberto Sowzer, uma figura importante na reconstituição dos
cultos e rituais perdidos no tempo. Sobre Yá Nassô, se sabe que ela
morava na Rua das Flores, no Pelourinho, e era comerciante de carnes no
Mercado de Santa Bárbara. Mas, já no Engenho Velho, as autoridades
novamente tentaram calar os tambores e cânticos africanos da Casa
Branca. Uma reportagem publicada no antigo Jornal da Bahia, de 3 de maio
de 1855, faz alusão a uma reunião na casa de Yá Nassô que teria sido
interrompida por uma diligência policial: "Foram presos e colocados à
disposição da polícia Cristovão Francisco Tavares, africano emancipado,
Maria Salomé, Joana Francisca, Leopoldina Maria da Conceição,
Escolástica Maria da Conceição, crioulos livres; os escravos Rodolfo
Araújo Sá Barreto, mulato; Melônio, crioulo, e as africanas Maria
Tereza, Benedita, Silvana... que estavam no local chamado Engenho Velho,
numa reunião que chamavam de candomblé".Pierre Verger destacou o nome
de Escolástica Maria da Conceição, não muito comum, com o qual seria
batizada, mais de três décadas depois, a famosa mãe-de-santo Menininha
do Gantois.
Isso indica que provavelmente os pais de
Menininha também faziam parte ou pelo menos freqüentavam a Casa Branca
no período em que ocorreu a ação policial. Mas o fato é que os adeptos
da Casa Branca resistiram a mais de dois séculos de vigilância
repressora. E em tom de discurso, as palavras do elemaxó do terreiro,
Antônio Agnelo Pereira, revelam o sentimento de orgulho comum aos filhos
e filhas do candomblé mais antigo do Brasil:"Sim, nossa gente tem
sofrido muito. Lutamos contra o cativeiro e continuamos lutando contra
outras injustiças, sempre com dignidade. Até há pouco nosso culto era
perseguido com cruel violência, mas resistimos. Ainda hoje, há quem
despreze nossas tradições, nossa religião, tratando-a, por exemplo, como
simples folclore, por ignorância ou preconceituosa má vontade. Isto não
nos impede de manter a herança divina que recebemos". Sociedade
paralelaHomens proeminentes e `mulheres do partido alto´ criaram
organizações secretas de negros na BahiaO culto a Babá Egum é um traço
da presença do Estado paralelo criado pelos iorubásDepois de criar as
irmandades e confrarias religiosas, e de incorporar novos rituais
proibidos pelas autoridades locais, os africanos ligados à Casa Branca
seriam ainda mais audaciosos, inaugurando as chamadas "sociedades
secretas". Com a chegada de mais e mais líderes nagôs à Bahia
escravocrata, o candomblé mais antigo do Brasil passaria a constituir
uma espécie de organização paralela à dos brancos do Novo Mundo.
Adaptadas aos rigores da clandestinidade, as sociedades secretas
representavam o poder ancestral exercido pelos soberanos da mãe África
sobre seus súditos baianos.Entre as sociedades secretas criadas pelos
negros ligados à velha Casa Branca, a mais importante foi a Ogboni, na
visão do antropólogo Renato da Silveira.Ela representava, na Bahia, o
conselho de ministros do alto escalão do império de Oyó e de outros
reinos iorubás. A sociedade Ogboni estava acima das demais associações e
até mesmo dos clãs, defendendo o interesse da sociedade e servindo como
poder moderador do Alafin (imperador). Era uma espécie de corte de
justiça do país iorubá, responsável pela manutenção da paz, da ordem e
pela determinação do consenso nas decisões políticas.A sociedade Ogboni
era dirigida por um conselho de seis êssas, chamados de Aramefá na
Bahia. Algumas decisões importantes, como o arrendamento das terras da
Barroquinha na virada do século XVIII, podem ter sido de sua
responsabilidade.Mestre Didi, filho da célebre mãe Senhora, do Ilê Axé
Opô Afonjá, se refere à presença do Aramefá como um conjunto composto
por homens consagrados "com postos na Casa de Oxóssi", existente ainda
nos anos 30.
O líder da Ogboni era o Oluô, cargo que na
Bahia foi ocupado por Bamboxê Obticô, africano que desempenhou papel
fundamental na criação da Casa Branca e na história dos chamados
"terreiros de tradição Ketu".O antropólogo Pierre Verger cita o nome dos
demais êssas: Assiká (ou Axipá, filho de Oxóssi ou Ogum), êssa Oburô
(filho de Xangô), êssa Kayodé (Oxóssi), e ainda os êssas Ajadi, Adirô e
Akessan, servidores de outros orixás importantes presentes no candomblé e
também do culto de Babá Egum, o espírito dos mortos. Silveira revela
que os êssas baianos eram ex-escravos alforriados que chegaram a
prosperar na sua atividade e conquistar prestígio e destaque nas
irmandades religiosas, sobretudo a de Bom Jesus dos Martírios, recebendo
ainda títulos honrosos no candomblé da Barroquinha.GueledésJá as
sociedades Iyalodê e Gueledé eram formadas apenas por mulheres e
representavam a influência feminina nas organizações africanas
reconstituídas na Bahia.As iyalodês, explica Silveira, foram originárias
dos reinos de Ibadan e Abeokuta. O título era o mais elevado que uma
mulher poderia alcançar nessas cidades, significando "senhora
encarregada dos negócios públicos". As iyalodês baianas, portanto,
defendiam os interesses das negras que se tornaram comerciantes, e assim
conseguiram fama e dinheiro depois de alforriadas. Na Velha Bahia, elas
ficariam conhecidas como "as mulheres do partido alto".Reverenciar os
poderes unicamente femininos era a missão da Sociedade das Gueledés,
originárias do reino de Ketu. Na Bahia, as gueledés tinham as mesmas
funções de origem, exaltando a fecundidade e a magia dos rituais
matriarcais. No terreiro na Barroquinha, em seguida no Engenho Velho, e
mais tarde em outros pontos da cidade, elas faziam os chamados Festivais
gueledés. Um par de máscaras usadas pelas mulheres da sociedade
secreta, pertencente à coleção do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, e provavelmente apreendido durante uma diligência policial,
revela o caráter carnavalesco das festas promovidas pela associação, com
o objetivo de ridicularizar a violência e exaltar a paz entre as
nações.Durante alguns anos, a mãe-de-santo Maria Júlia Figueiredo
(Omonikê) acumulou os títulos de iyalodê, de ialaxé das gueledés, de
ialorixá da antiga Casa Branca e ainda de provedora-mor da Irmandade de
Nossa Senhora da Boa Morte, a principal instituição das mulheres
iorubás, ativa ainda hoje na cidade de Cachoeira. Era Maria Júlia
Figueiredo, portanto, a representante suprema das matriarcas africanas.
Através dos ritos misteriosos das sociedades secretas, os adeptos do
candomblé criaram na Bahia um novo estado iorubá, extinto após longo
período de repressão. E sua existência está intimamente ligada ao mito
da criação do candomblé mais antigo do Brasil."Embora tenham perdido o
grande poder que representavam na África, esses títulos mantiveram a
solenidade e a legitimidade, pois, adaptados às condições locais, foram
atribuídos de acordo com méritos, preceitos, ritos e costumes
tradicionais, reconhecidos e praticados pela diáspora nagô-iorubá, que
começava a tomar consciência de si como nacionalidade", observou Renato
da Silveira.
Do Estado paralelo criado pelos iorubás,
ficaram apenas vagas lembranças, cânticos cerimoniais e alguns títulos
ainda hoje usados, além de máscaras e outros objetos de culto, alguns
apreendidos durante a repressão policial que se deu na Bahia, sobretudo
nos anos 20 e 30 do século que passou. No entanto, alguns rituais se
mantiveram até os dias de hoje, como o culto a Babá Egum, com presença
marcante, sobretudo, em candomblés da Ilha de Itaparica. Único
panteãoAncestrais africanos foram cultuados no mesmo templo pela
primeira vez na BahiaNo Terreiro da Casa Branca eles se encontrariam
pela primeira vez, discretamente, para não atrair os olhares vigilantes e
repressivos das autoridades locais. Cultuados separadamente em seus
reinos de origem, os orixás africanos seriam invocados em um só lugar,
na Bahia, pelos negros escravos trazidos para o recôncavo. Por razões de
proeminência, em um meticuloso acordo político e espiritual, os
fundadores do candomblé mais antigo do Brasil implantariam em Salvador
os cultos a Oxóssi, Xangô, Oxum e Oxalá, os quatro pilares de sua fé,
representando os quatro cantos do país iorubá.Enquanto o povo de cada
reino iorubá mantinha seus cultos orientados às diversas qualidades de
um único orixá, na Casa Branca, quando esta ainda funcionava nos fundos
da Barroquinha, foi criado o xirê - a roda dos orixás -, permitindo que
as santidades fossem reunidas em um único panteão. Mas não por acaso.O
início dessa história começa ainda na África, em meados do século XVIII,
quando o reino do Daomé (atual República do Benin) inicia sua expansão
sobre o território iorubá. Ao passo que os daomeanos invadiam e
saqueavam as cidades, profanando os locais sagrados e deixando seu
rastro de destruição por onde passavam, os prisioneiros iorubanos eram
feitos cativos e vendidos em um dos movimentados portos da Costa da Mina
(também conhecida como Costa dos Escravos). De lá, milhares deles
viriam para Salvador.Mais do que saudades do seu canto, cada povo trazia
na lembrança os rituais sagrados do orixá protetor de seu reino. Assim,
à medida que os daomeanos avançavam sobre os iorubás, novos povos iam
chegando, com novas características religiosas. Em pouco tempo, o
litoral da velha Bahia se transformaria num espelho demográfico da Costa
da Mina. Com a fundação do primeiro candomblé do Brasil, seria
necessário, portanto, que ele representasse as diferentes nações que a
partir de então passaria a integrar.E foi o que fizeram os criadores da
Casa Branca.Em segredo absoluto, homens e mulheres africanos
pertencentes às irmandades negras do Bom Jesus dos Martírios e de Nossa
Senhora da Boa Morte plantariam os fundamentos de cada orixá na terra de
todos os santos.
O primeiro a chegar foi Oxóssi, do reino de
Ketu. Invocado por seus súditos, ele veio e ocupou a terra, recebendo
por isso o título de onilé. Mais tarde, Xangô - cultuado no reino de
Shabé e Oyó - tomaria conta da casa, do barracão principal, recebendo o
título de onilê. A esposa de Xangô, Iansã, também viria com os oyós.Anos
depois Oxum e Oxalá também ganhariam assentos privilegiados,
representando a nação Ijexá e o povo de Ifé, capital espiritual dos
iorubás.Panteão sagradoNão se sabe ao certo quem foi o responsável
direto pela união de todos os orixás em um único panteão sagrado. Na
tradição oral dos seguidores da Casa Branca se perdeu esse importante
detalhe histórico. Mas dois nomes despontam como os mais prováveis; dois
homens entre muitas mulheres, dois grandes sacerdotes que vieram para
Salvador exclusivamente para participar da reconstituição religiosa que
se daria na Barroquinha. Um deles, possivelmente criou o xirê, inaugurou
a roda dos orixás, a principal novidade de culto fundada pelo terreiro
baiano, e que, anos passados, seria seguida pelos seus filhos e
filhas.Os protagonistas dessa história são Babá Assiká (ou Axipá) e
Bamboxê Obticô. Ambos vieram da África para ajudar na fundação do
terreiro. Os dois têm o título de êssas (ou uêssas), que revelam serem
ministros do conselho de Ketu, altos oficiais iniciados no culto a
Oxóssi.De acordo com o pesquisador Vivaldo da Costa Lima, Bamboxê
significa "ajuda-me a segurar o oxê", sendo oxê o machado duplo, a
ferramenta ritual de Xangô. A tradição afirma que Bamboxê era um membro
da família real, um príncipe de Oyó, reino devastado pela guerra a
partir dos anos 1830, data em que muitos afirmam ter sido fundado
"oficialmente" o terreiro na Barroquinha. Ainda hoje sua memória é
exaltada no Padê, a cerimônia de abertura do candomblé da Casa Branca,
como êssa Obticô.No Brasil recebeu o nome "branco" de Rodolpho Martins
de Andrade e, além de ter sido um dos possíveis criadores da roda dos
orixás, participou da iniciação de importantes mães-de-santo da Bahia,
como a de Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá.Atualmente seu corpo
descansa em um jazigo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
depois de ter sido transladado do Cemitério Quinta dos Lázaros, onde foi
sepultado primeiramente.
Na sua lápide é possível ler: "Jazigo
perpétuo - Rodolpho Bambocher.- Felizberto Sowzer e família - 1926".
RegistrosSobre babá Assiká, o outro homem que deixou seu nome na
lembrança da tradição oral que narra a fundação da Casa Branca, existem
pouquíssimos registros. Dois etnólogos franceses, estudiosos dos
candomblés da Bahia, fazem referência ao seu nome: Roger Bastide e
Pierre Verger. Bastide afirma que babá Assiká veio à Bahia em companhia
de iyá Nassô, considerada a fundadora de fato do terreiro que hoje leva
seu nome, passando por seu escravo para aqui cumprir sua missão. Para
Verger, Assiká teria sido o fundador propriamente dito do terreiro. Nos
cânticos do Padê da Casa Branca, quando são saudados os seis êssas
fundadores do axé, "os senhores do rito", babá Assiká é o primeiro a ser
lembrado, sugerindo sua maior antiguidade, de acordo com Juana Elbein
dos Santos, outra estudiosa do assunto. Para o antropólogo Renato da
Silveira, babá Assiká formou todos os demais, inclusive Bamgbose, e sua
missão era organizar a mudança que estava por ser feita a partir de
1830. E essa mudança chegaria para valer. Uma mudança feita em sigilo,
com coragem, magia e tradição ancestral. Com a sabedoria das lendárias
iya Nassô e Marcelina Obatossí, com a autoridade de babá Assiká e
Bamboxê Obticô, e com a ajuda de muitos outros africanos anônimos, os
orixás enfim tomariam assento nas terras sagradas da Bahia, primeiro na
Barroquinha, de onde foram expulsos pelas autoridades. Mas depois, em
definitivo, no Engenho Velho da Federação, onde permanecem ainda hoje,
zelando pelo seu povo fiel.